REFLEXÕES SOBRE O PLC 5.003/2001 - Parecer do Dr. Miguel Guskov
A proposição sob análise, qual seja, o Projeto de Lei nº 5.003/01, de autoria da Deputada ? Iara Bernardi, atualmente tema de discussão no Senado Federal – PLC nº 122/2006, tem por escopo a alteração da Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça e cor, dá nova redação ao parágrafo 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal e ao art. 5º da Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
O projeto é resultado do debate trazido à voga por diversos movimentos sociais encampados por minorias, preocupadas com o grave problema da discriminação por motivos de etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, abrangendo transexuais e travestis.
Decorosa é a inquietação dos movimentos dos direitos humanos contra práticas atentatórias aos direitos fundamentais da pessoa humana. Inegável a urgente necessidade de educar a população, ensinando o respeito e urbanidade com que devem ser tratados todos os seres humanos, sejam eles semelhantes ou diferentes. A lei, ademais da função repressora, tem a função de educar, prevenindo condutas que violam bens jurídicos considerados fundamentais para a sociedade e que foram erigidos à categoria de bens constitucionalmente resguardados, tão grande seu grau de importância para o corpo social.
Ao falar-se em igualdade, a Constituição Federal de 1988 não expressa sua intenção de resguardá-la somente no sentido jurídico-formal, ou seja, a igualdade de todos perante a lei. Elucidam o princípio outras normas ali postas, entre os próprios objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, qual seja, a veemente repulsa a qualquer forma de discriminação quando enfatiza a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras (art. 3º, IV da CF/88). Neste mister, apropriada a apresentação do presente projeto de lei, que visa dentre tantos objetivos, reprimir por meio de sanções penais e administrativas condutas discriminatórias contra a pessoa humana.
DAS ALTERAÇÕES REFERENTES À LEI Nº 7.716/89
A Lei nº 7.716/89, em sua redação original, veio somente tornar efetivo o preceito constitucional proibitório do preconceito de ordem racial. Àqueles preceitos, dado o princípio da legalidade penal, efetivamente faz-se primordial acrescer o preconceito decorrente da orientação sexual, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, firmada sua premência pela Organização das Nações Unidas.
Olvidou-se o criador do projeto, no entanto, de grupo social igualmente oprimido: o dos idosos, sofredores de diversos constrangimentos e violência, em razão de sua hipossuficiência. Ao projeto, destarte, deve ser acrescida a proteção ao idoso, dando-se eficácia plena às normas constitucionais que lhe garantem a dignidade e o bem-estar.
Reza o art. 1º:
“Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero.”
A discriminação consiste, em síntese, dentre as condutas mencionadas no projeto de lei, na limitação do exercício de direitos, resultante do preconceito, outrora somente em função da cor ou da raça e, agora, em razão de etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Considera-se crime de discriminação, além de outras ações, impedir o acesso de alguém ao trabalho, seja em cargo público ou emprego público ou de natureza privada, impedir o ingresso e permanência em restaurantes, bares e outros estabelecimentos abertos ao público.
A dificuldade na aprovação do projeto de lei, neste ponto, reside somente na dificuldade interpretativa que ensejará a permanência dos elementos normativos do tipo 'gênero e identidade de gênero', trazidos pelo art. 1º, da lei em comento. Qual o significado de tais expressões? O debate em torno do tema, por não ser de conhecimento aprofundado dos operadores do Direito, poderá trazer dificuldades de aplicação da norma e controvérsias em sua interpretação. Daí a necessidade de ser imprimida maior clareza ao dispositivo.
Conquanto a Comissão de Constituição e Justiça desta Casa Legislativa, ao elaborar seu parecer, tenha buscado esclarecer o assunto, quando afirma que 'identidade de gênero' trata-se de ser homem ou mulher e 'papel de gênero' significa comportar-se de forma masculina, feminina ou andrógina, há necessidade de maior elucidação, mormente por cuidar de tipo penal, que comporta interpretação estrita, atendendo ao princípio das interpretações extensivas e prejudiciais ao réu. Observe-se trecho do parecer referido:
“A definição acima nos leva, por sua vez, a fazer uma distinção entre os diversos componentes (socialmente construídos) pelos quais classificamos a sexualidade humana: sexo biológico (ser macho, fêmea ou intersexual anátomo-fisiologicamente), orientação sexual (atração por pessoas do sexo oposto ou do mesmo sexo biológico, isto é, ser heterossexual, bissexual ou homossexual), identidade de gênero (ser homem ou mulher) e papel de gênero (comportar-se de forma feminina, masculina ou andrógina).”
O tipo conclama esclarecimento, vez que o vocábulo 'gênero' parece se confundir com o sexo do indivíduo, cuja conseqüência seria a desnecessidade de sua previsão dentro do dispositivo atinente que especificará o elemento subjetivo dos tipos penais dos crimes de discriminação. Não há, outrossim, conceito determinado sobre 'identidade de gênero'.
O princípio da legalidade constitucional (lex certa), insculpido no art. 5º, XXXIX, da Carta Maior, reclama a clareza e objetividade dos tipos penais. Ao revés estar-se-ia dando margem à discricionariedade, através do uso de conceitos indeterminados e elásticos nos textos legais. Presente aí o risco de gerar arbitrariedades, justamente o que visa o princípio da legalidade extirpar. Não deve o legislador caminhar em sentido contrário à tendência hodierna da racionalização do direito penal, preenchendo o ordenamento jurídico com leis de formulação indeterminada, leis vazias, simbólicas, que tão-somente se destinam a colocar em cena a diligência na luta contra certas formas de criminalidade. Isto configura grave risco para a coletividade.
A violação ao princípio da legalidade representa um forte instrumento de governo para se utilizar um eufemismo para a arbitrariedade. Os tipos genéricos são os que comprometem o entendimento do delito, pois permite várias interpretações, e, por conseguinte, torna difícil a determinação do conteúdo exato da conduta delituosa. Tais tipos penais se ajustam sempre de forma perfeita àquela ação praticada que se deseja punir, quando da análise da subsunção do fato à norma de teor indeterminado. Os indivíduos ficam expostos, dessa forma, à pessoa que detém o poder, tendo em vista que será ela quem dará a interpretação que melhor lhe aprouver.
Ao se deixar a resposta da subsunção do fato à norma somente nas mãos daquele que detém legitimidade para dizer o direito, como ocorre com tipos de conteúdo indeterminado, consagrar-se-á a insegurança jurídica, ao invés da legalidade penal estrita assolar.
O art. 4º-A, por sua vez, trata da vedação à dispensa direta ou indireta, em função da discriminação, o que, se não corrigido, pode ensejar contradições na interpretação da norma, criando a figura da estabilidade do empregado, em virtude da raça, do sexo, da orientação sexual, da religião, etc.
Dispensa direta, segundo a doutrina trabalhista é a demissão, ato praticado pelo empregador com ou sem justa causa, e dispensa indireta é o pedido de demissão do empregado por justa causa do empregador, o que resulta na desnecessidade de dar-lhe o aviso prévio. Ora, ao se falar em dispensa direta em seu sentido amplo, o legislador abarca também a hipótese de dispensa pelo empregador por justa causa, cujas hipóteses já se encontram minuciosamente descritas na legislação trabalhista, não guardando relação com a discriminação.
Há autorização legal, em se tratando de justa causa, para a demissão do empregado, o que seria incompatível com sua vedação, a depender de raça, sexo, cor, religião, orientação sexual, etc. A única hipótese em que poderia considerar-se haver o dolo específico do empregador na demissão do empregado, em face do preconceito, seria a dispensa direta sem justa causa. A justa causa condiz sempre com uma hipótese de demissão terminante, já autorizada por lei. A fim de evitar a antinonímia entre as normas, no tipo deve ser alterada a expressão demissão direta, por dispensa direta sem justa causa, motivada tão-somente pela discriminação.
No que tange aos empregados que detém estabilidade, note-se que sequer há vedação legal para a dispensa direta com justa causa, de tão grave que é a conduta ilícita do empregado.
No que concerne aos tipos penais descritos nos arts. 5º, 6º 7º e 7º-A, há de se ter em mente que devem ser interpretados nos estreitos limites do elemento subjetivo do tipo específico descrito no caput do art. 1º. E isso porque as condutas ali descritas podem ser legítimas, a depender do fundamento utilizado pelo dono do estabelecimento ao impedir o ingresso e permanência no local ou mesmo a negativa de realização do negócio jurídico.
Os arts. 8º-A e 8º-B devem ser analisados com certa ressalva. A sociedade não admite amplamente a demonstração de afeto em público, seja para heterossexuais, seja para brancos, seja para pessoas de tal ou qual religião. Devem ser respeitados o bom senso e a decência acima de tudo. Tanto é assim, que o art. 233, do Código Penal prevê para todos indistintamente o crime de ato obsceno em lugar público, aberto ou exposto ao público.
A restrição deve ser acrescida aos tipos penais, com a expressão 'nos limites da lei', em referência ao artigo acima mencionado, o que explicitará que a liberdade restringe-se aos limites dados às demais categorias sociais, sob pena de impingir a desigualdade em favor apenas das pessoas que se encaixam nos grupos descritos no caput do art. 1º.
Se a norma tem o propósito de educar a população acerca das condutas admitidas em sociedade, para alcançar sua finalidade, deve ser absolutamente clara, sob pena de dar ensejo à inversão de valores sociais, resultado de uma interpretação oblíqua de seus preceitos.
Aos tipos penais citados, verifica-se a pretensão do legislador de puní-los com extremo rigor, cominando-se penas de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão ou mesmo de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão, o que inviabilizaria a aplicação de benefícios processuais e penais, como a suspensão condicional do processo (art. 89, da Lei nª 9.099/90), a prescrição breve e o cumprimento da pena em regime menos severo.
Sabe-se que a atividade legislativa encontra limites na Constituição Federal de 1988, que consagra o princípio da proporcionalidade das penas. A resposta punitiva estatal ao crime deve guardar proporção com o mal infligido pelo ofensor ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividades distintas.
Desse modo, não se pode conceber que crimes que teoricamente seriam de maior gravidade, a exemplo do homicídio culposo, do aborto (art. 124), do infanticídio, da lesão corporal, o legislador tenha cominado penas mais brandas. Admitir-se a aprovação da norma da maneira como está enfocada, seria entender proporcional, a título demonstrativo, que uma pessoa que simplesmente impeça a entrada de um homossexual em um restaurante receba pena mais severa do que uma pessoa que lhe bata na cara. Ou, ainda, quem vier a matar culposamente um homossexual teria pena mais branda do que aquele que impedisse um gesto de carinho entre homossexuais em local público. Isso é absurdo.
A desproporção é evidente. Mais se tem protegido o direito à plena liberdade do que à própria vida e à integridade física do indivíduo. Inegável que todos são bens de supina importância para a sociedade, no entanto, admitir-se como justas as sanções dispostas no projeto de lei, seria violar o princípio da proporcionalidade preceituado pela Magna Carta, como fator de ponderação imposto ao legislador.
Os demais efeitos penais descritos a partir do art. 8º, do projeto de lei, como acréscimos aos arts. 16 e 20, da Lei nº 7.716/89, igualmente escapam dos lindes do princípio da proporcionalidade e da pessoalidade das penas. Em primeiro lugar, porque mostram-se extremamente gravosos, ultrapassando a pessoa do condenado, violando, por assim dizer, o princípio da pessoalidade das penas. E em segundo lugar, porque em alguns casos não foram graduados de acordo com o grau de culpabilidade do agente.
Registre-se que o art. 18, da Lei nº 7.716/89 esclarece que os efeitos de que trata o art. 16 desta lei não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença. A redação do artigo faz menção ao art. 17 da mesma lei, que foi vetado pelo Presidente da República à época de sua promulgação, tendo perdido sua eficácia. Tal menção poderá ser por ora suprimida, quando da edição da presente lei.
Observe-se. O inciso I comina a perda do cargo ou função pública, independentemente do quantum da pena imposta ao infrator da lei, mesmo que a pessoa não esteja agindo na qualidade de agente público. Logo, mesmo que o ofensor, sendo agente público, tenha agido como particular, sua pena será a mesma de um agente público que tenha praticado atos discriminatórios no exercício de suas funções. Há uma incongruência na norma penal à míngua de pontuação sobre as diferentes condutas de servidores públicos, agindo na esfera de vida privada ou no exercício do múnus público.
Aqui vale estabelecer uma comparação com o Código Penal que, ao cominar efeitos anexos à condenação, traz, não como efeito automático, mas decorrente de motivação específica do juiz, a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo, quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a 1 (um) ano nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública e quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
Note-se a diferença feita pelo legislador. Somente incidirá o efeito anexo da condenação concernente à perda do cargo ou função pública, segundo o Código Penal, quando a pena privativa de liberdade for superior a 4 (quatro) anos. Já nos crimes cometidos contra a própria Administração Pública somente perderá o cargo o servidor a quem for aplicada pena privativa de liberdade superior a 1 (um) ano.
Clara é a desproporcionalidade. Se o agente público comete crime de discriminação em qualquer de suas modalidades, certamente perderá o cargo, mesmo sendo condenado à pena privativa de liberdade inferior a 1 (um) ano. De outro lado, um agente público que comete crime contra a Administração Pública, somente se tornará passível de perder o cargo se a pena privativa de liberdade irrogada for superior a 1 (um) ano. O dispositivo deve ser alterado para adequar-se à mesma razão jurídica do art. 92, do Código Penal.
Em relação aos incisos II e III, os efeitos dados à condenação, que não são automáticos, também são demasiado gravosos. Inabilita-se a pessoa a contratar com o Poder Público, bem como ter acesso a créditos concedidos pelo Poder Público, o que se assemelha mais a uma penalidade de cunho eleitoral, dada ao cidadão que não votou na última eleição (art. 7º, do Código Eleitoral – Lei nº 4.737/65). Não há nada semelhante no ramo do Direito Penal, nem mesmo em se tratando de crimes praticados contra a Administração Pública.
Não há razão para prejudicar as relações jurídicas do agente infrator com o Poder Público, posto se tratar de crime que viola bem jurídico individual. Afigura-se desproporcional prejudicar as relações jurídicas do ofensor com o Poder Público, porquanto a pena privativa de liberdade cominada já se mostra suficiente para prevenir e reprimir condutas de natureza discriminatória.
A multa prevista no inciso V, por sua vez, de até 10.000 (dez mil) UFIRs, que poderá ser multiplicada em até 10 (dez) vezes em caso de reincidência, levando-se em conta a capacidade financeira do infrator, deve ser alterada. Com efeito, a previsão do valor em UFIRs mostra-se atécnica, tendo em vista a extinção do indexador quando da transição para o Plano Real.
A determinação da conversão dos valores da legislação tributária indexados em UFIRs para o Real se deu com fundamento no art. 30, da Lei 9.249/95 e 25, da Medida Provisória nº 1.542/96, como se extrai da dicção dos mencionados dispositivos legais:
“Art. 30. Os valores constantes da legislação tributária, expressos em quantidade de UFIR, serão convertidos em Reais pelo valor da UFIR vigente em 1 º de janeiro de 1996.”
O projeto de lei já nasce desatualizado por tomar em consideração indexador extinto que não mais será atualizado pelo Poder Público, o que levará à rápida obsolescência da norma. Demais disso, cumpre lembrar que mesmo a aplicação de multas em Direito Penal, em sendo considerada verdadeira sanção criminal, deve seguir o critério trifásico, verificando o julgador as circunstâncias judiciais para fixação da pena base após a aplicação de agravantes e atenuantes e, por derradeiro, causas de aumento e diminuição de pena.
A pena de multa, destarte, deverá ser cominada em dias-multa, de molde a permitir ao julgador valorá-la de acordo com as circunstâncias do crime e, após, de acordo com a capacidade financeira do infrator, quando da fixação do valor dos dias-multa, nos termos do art. 49, do Código Penal. Observe-se o que explicita o Superior Tribunal de Justiça, ao tratar da aplicação da pena de multa:
“PENAL. PENA DE MULTA. CALCULO.
1. DE ACORDO COM SISTEMA DO DIA-MULTA ADOTADO PELA NOVA PARTE GERAL DO CP NO SEU ART. 49, A PENA DE MULTA DEVE SER CALCULADA EM DUAS FASES DISTINTAS. NA PRIMEIRA FASE E FIXADO O NUMERO DE DIAS-MULTA, ENTRE O MINIMO DE 10 E MAXIMO DE 360, CONSIDERANDO-SE AS CIRCUNSTANCIAS DO ART. 59 DO DIPLOMA PENAL. NA SEGUNDA, DETERMINA-SE O VALOR DE CADA DIA-MULTA LEVANDO EM CONTA A SITUAÇÃO ECONOMICA DO CONDENADO.
2. RECURSO NÃO CONHECIDO.”
(REsp 46.698/DF, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 03.04.1997, DJ 19.05.1997 p. 20652)
Devem, desse modo, ser dados instrumentos ao julgador para individualização justa da sanção pecuniária, de acordo com as circunstâncias específicas do caso concreto.
Os incisos IV e VI referem-se a atividades empresariais que sofrerão restrições de ordem tributária e administrativa, através da vedação de isenções, remissões, anistias ou quaisquer benefícios de natureza tributária e terão o funcionamento suspenso por prazo não superior a 3 (três) meses.
O dispositivo de ordem tributária peca por se tratar de pena de caráter perpétuo, porquanto não apresenta o ínterim em que ficará a empresa impedida de receber benefícios tributários do Poder Público. Mas não é só. O que se deve ter em mente é o benefício da coletividade ao ver repelida a atividade empresarial, em razão de fato pontual que rechaçou direitos individuais de pessoa determinada.
Ad exemplum, o impedimento de ingresso de uma pessoa determinada em certo estabelecimento, em razão da discriminação nos termos do art. 1º, levará à suspensão de suas atividades e vedação a benefícios tributários, o que resultará em prejuízos para o restante da coletividade, que também será penalizada pela paralizaçao das atividades empresariais, mormente se se tratarem de serviços públicos, como pretende o parágrafo 2º do dispositivo do projeto de lei.
As penas passarão da pessoa do condenado, violando o princípio da pessoalidade da pena, porquanto sofrerão retaliações empregados com o risco de perder o emprego, consumidores que deixarão de ter à disposição determinado produto ou serviço e o próprio mercado, que poderá ver atingido o caráter concorrencial. Estará sendo violado o princípio da liberdade de iniciativa, constitucionalmente previsto, que visa resguardar o livre funcionamento dos mercados.
A pena é perigosa, além de manifestamente desproporcional. O bem jurídico restringido pela penalidade é muito maior e pertence à coletividade e não ao infrator condenado. Rememore-se que a proporcionalidade da pena não deve ser verificada somente do ponto de vista do infrator como resposta do Estado a seu ato. A proporcionalidade da pena deve ser analisada do ponto de vista da sociedade, sob a ótica do custo que a restrição trará para seus membros.
Quando o custo for maior do que a vantagem, o tipo será inconstitucional, porque contrário ao Estado Democrático de Direito. A criação de tipos incriminadores e das penas deve ser uma atividade compensadora para os membros da coletividade. Um Direito Penal Democrático não pode conceber uma incriminação que traga mais temor, mais ônus, mais limitação social do que benefício à coletividade.
Desse modo, devem ser retirados do projeto de lei os efeitos anexos da condenação previstos nos incisos IV, V e principalmente do parágrafo 2º, do art. 8º, que tratam da extinção do contrato de concessão e permissão de serviço publico, o que violaria o princípio da continuidade do serviço publico, mesmo em existindo o instrumento da ocupação, dado o ônus que terá de ser suportado pela Administração Pública, em face de uma conduta pontual, contra a qual afigura-se suficiente a aplicação de sanção privativa de liberdade.
Por seu turno, o preceito insculpido no art. 20 é perigoso. Esse deve ser interpretado à luz da liberdade de manifestação de pensamento e de expressão. Não se pode considerar discriminatória a discordância de certos grupos sociais com os comportamentos externados por outros. O conflito de idéias religiosas, de culturas regionais, a discordância relativa à orientação sexual são fatores naturais do embate social, que bem convive com suas diferenças fenomênicas. A punição deve existir somente quando se verificar a extrapolação dos padrões de razoabilidade, por meio da violência, ameaça, constrangimento vexatório.
Não se pode impedir um pai de educar seu filho de acordo com suas crenças e padrões de conduta. Isso é até dever imposto pela Constituição Federal de 1988. Não se pode impedir um ministro religioso de difundir seus ideais e dogmas religiosos; isso feriria a liberdade de culto. A interpretação do que seria mera opinião e o que seria preconceito é deveras dificultosa, deixando ao julgador um tipo penal aberto, não recomendável, em face do princípio da segurança jurídica.
Noutro palmilhar, anote-se que dada a qualidade integrativa do preceito descrito no art. 1º, do projeto de lei, que traz o dolo específico do agente, conforme o qual interpretar-se-ão todos os tipos penais, deverá ser feita ressalva no art. 14, sob pena de consolidar-se sua inconstitucionalidade em relação à discriminação operada em razão da orientação sexual e identidade de gênero.
O dispositivo trata do impedimento ou obstáculo criado, por qualquer meio ou forma, ao casamento. À época em que foi editada a norma, essa somente tratava do preconceito de ordem racial, o que se amoldava perfeitamente à Constituição Federal de 1988. Não poderiam, assim, existir impedimentos para o casamento, em razão da raça ou da cor do indivíduo.
A nova redação do preceito inicial, todavia, poderá ensejar interpretações em desacordo com a Carta Maior que somente reconhece como entidade familiar a união entre pessoas de sexos opostos: homem e mulher (art. 226, da CF/88). A lei deve ser interpretada de acordo com a Constituição Federal de 1988. Contudo, a fim de evitar interpretações desavisadas, no sentido de que seria considerado discriminatório impedir o casamento por razões de orientação sexual ou identidade de gênero, mister é a inclusão de ressalva no artigo citado.
Para alcançar tal objetivo, necessária seria a alteração da Constituição Federal de 1988, através de emenda constitucional, antes de criar-se um projeto de lei, admitindo o casamento ou a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
DA ALTERAÇÃO DO PARÁGRAFO 3º DO ART. 140 DO DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940 – CÓDIGO PENAL
Ao crime de injúria qualificada acresceram-se as expressões procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. As considerações sobre a indeterminação dos conceitos gênero e identidade de gênero lavradas em relação às modificações que serão operadas na Lei nº 7.716/89 também devem ser aqui consideradas, de modo a evitar o malferimento ao princípio da legalidade (lex certa).
Neste passo, deve o legislador atentar para a pena de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão, que já vigorava nos termos da lei anterior para os crimes de injúria qualificada por motivos de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. A pena, como chamou a atenção grande parte da doutrina, afigura-se desproporcional. O legislador poderia aproveitar o ensejo para reduzi-la, a quantum suficiente para repressão e prevenção da conduta injuriosa.
O professor Damásio de Jesus (1998, páginas 478 e 479) lembra com muita prudência o fato que motivou o legislador a inovar nesta modalidade delituosa. Para Damásio, a motivação se deu tendo em vista que costumeiramente, antes da referida lei inovar, aqueles que praticavam crimes descritos na Lei nº 7716/89, ou seja, preconceitos de raça e cor, argumentavam astuciosamente que teriam simplesmente praticado crimes de injúria, que possui sanção penal muito mais branda.
Damásio sustenta que o legislador caminhou mal, na medida em que chamar alguém de “negro”, “preto”, “pretão”, “turcão”, “japoronga”, “baianão”, desde que com animus injuriandi referente à raça, cor, etnia, religião ou origem, sujeita o agente à pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. Portanto, crimes que teoricamente seriam de maior gravidade, como homicídio culposo, aborto (art. 124) e aborto consentido o legislador cominou pena mais branda. Sustenta, ainda, a título exemplificativo, que chamar um japonês de “bode” com dolo de ofensa a sua origem étnica, conduz a uma pena de 1 (um) ano de reclusão e por sua vez matar culposamente este mesmo japonês, o homicida gozará de tratamento mais benevolente, vez que o Código Penal cominou pena mínima de 1 (um) ano de detenção.
O exagero do legislador ao cominar a pena em grau deveras elevado ofende claramente o princípio constitucional da proporcionalidade entre os crimes e suas respectivas penas. Os crimes que deveriam ser punidos com maior serveridade não são, quando comparadas suas penas ao crime de 'injúria preconceituosa'.
DA ALTERAÇÃO DO ART. 5º, DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO
Ao art. 5º, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT o projeto de lei acresceu o parágrafo único, com a seguinte redação:
“Parágrafo único: Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, orientação sexual e identidade de gênero, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do caput do art. 7 da Constituição Federal.”
Olvidou-se o criador do projeto do preconceito por motivos religiosos, o qual deve ser mencionado no dispositivo. Anote-se que a norma trazida consiste em norma jurídica imperfeita, dado que não traz qualquer sanção específica ao agente infrator, as quais vêm encampadas por outras normas.
CONCLUSÃO
Andou bem o legislador, a partir da atenção dada a movimentos sociais, ao pretender acrescer como discriminatórias condutas violadoras de direitos individuais, por motivos de etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero.
As críticas ao projeto não se referem à boa intenção do legislador, mas ao malferimento dos princípios da legalidade penal, no aspecto lex certa, e da proporcionalidade, dado o elevado rigorismo utilizado contra condutas que não ofendem a vida ou integridade do indivíduo, ficando apenas no campo emocional, psicológico.
Não que esse bem jurídico, a integridade emocional, seja menos importante, mas deverá ser guardada proporcionalidade entre a reprimenda privativa da liberdade do infrator e o mal causado, que se restringe à esfera individual do ofendido, mais se aproximando de crime contra a honra.
Os crimes de discriminação violam a liberdade do exercício de alguns direitos, como de ingressar e permanecer em determinados lugares, o direito de acesso ao trabalho, o direito de contratar, etc. Sua correção, contudo, é mais simples do que retornar ao status quo ante em se tratando de crimes contra a vida e contra a integridade física do indivíduo, que são, por essa razão, bens jurídicos de proteção de escala superior.
As penas cominadas devem ser reduzidas e alterados seus efeitos anexos, de maneira que seja firmada a justa proporção entre a conduta danosa e a resposta do Estado.
Os tipos penais devem conter o máximo de precisão em relação aos conceitos que trazem. A racionalização do Direito Penal e o garantismo penal, que visam proteger o indivíduo contra arbitrariedades do Estado, impõe ao legislador que seja claro quanto aos lindes das normas penais incriminadoras, evitando-se conceitos abertos.
De todo o exposto, os conceitos 'gênero' e 'identidade de gênero' merecem ser substituídos, a fim de que se evitem largos debates jurídicos pelos operadores do direito, que não têm profundo conhecimento sobre os termos utilizados por estes grupos sociais.
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